O Comando do Exército aceitou um pedido da empresa Rumo Logística para ceder espaço de área militar em Mato Grosso para a passagem de linha férrea em troca de contrapartidas, como a construção de uma casa para um general e uma usina fotovoltaica.
A ferrovia terá mais de 700 km e ligará a estação de Rondonópolis a Cuiabá e Lucas do Rio Verde, cidades em Mato Grosso. Com esse braço, será possível ligar por ferrovia a região norte do estado, de alta produção agrícola, ao porto de Santos (SP). As informações são da Folha de SP.
O traçado da ferrovia, porém, passa dentro de área militar do Exército no município de Rondonópolis. O local possui 17 km² e é utilizado pelo 18º Grupo de Artilharia de Campanha do Exército para treinamentos de tiros de canhões e obuseiros —disparos que atingem até 21 km de distância.
O espaço solicitado pela Rumo, empresa do grupo Cosan, é de cerca de 540 mil m². O traçado adentra a área militar em dois trechos numa das pontas do terreno, como mostram documentos obtidos pela Folha.
Técnicos militares avaliaram o espaço em R$ 16,5 milhões. Em acordo com o comandante do Exército, general Tomás Paiva, a Força negou uma proposta da Rumo de entrega de novo terreno para os treinamentos militares e decidiu apresentar uma contrapartida.
Pela proposta, a Rumo deve realizar as seguintes obras ou melhorias:
- Construção de um bloco de 12 apartamentos, de três andares, na Vila Militar Perimetral, em Cuiabá. Cada apartamento terá 131,70 m² de área útil, com três quartos, sala de estar, área de serviço e varanda
- Construção de uma casa para o general chefe da 13ª Brigada de Infantaria Motorizada. Ela será levantada em terreno de 5.800 m², com 582 m² de área coberta —residência avaliada em R$ 2,2 milhões. O projeto da casa, ao qual a Folha teve acesso, prevê três suítes, sala de estar e de TV, piscina e área gourmet com churrasqueira.
- Construção de uma casa para oficial superior chefe do Estado-Maior da 13ª Brigada de Infantaria Motorizada. Imóvel avaliado em R$ 850 mil, com terreno de 692 m² e área coberta de 299 m². Segundo o projeto, a casa deve possuir duas suítes, escritório, salas de estar e de TV e área gourmet.
- Adequação da rede elétrica dos pavilhões de baterias do 18º Grupo de Artilharia de Campanha, em Rondonópolis. Trabalho envolve a troca de todos os condutores de média e baixa tensão e instalação de quatro novos transformadores em subestações aéreas.
- Construção de usina fotovoltaica em Campo Grande (MS), com sistema de aterramento e proteção contra descargas atmosféricas. Conjunto de placas solares deve gerar 500 kWp.
Em um parecer interno, o major Mateus Tonini afirmou que a construção da ferrovia em parte do terreno militar traria “evidente prejuízo à instrução e ao adestramento” da unidade militar.
Tonini, porém, avaliou que é possível manter os treinos da artilharia do Exército e a ferrovia em funcionamento caso sejam estabelecidas “medidas de segurança, coordenação e controle específicas, que garantam o menor grau de risco possível para ambas as atividades”.
Em nota, o Exército disse que realizou “tratativas para ajustar o traçado de forma que não comprometesse o uso militar do terreno, bem como as propostas de contrapartidas foram discutidas em várias reuniões com a referida empresa, culminando com o aceite de ambas as partes quando da assinatura do contrato”.
A Força acrescentou que fechou o acordo de cessão do espaço, com as contrapartidas, de forma a atender os “princípios da legalidade, economicidade, eficiência, supremacia do interesse público, motivação e razoabilidade e com base no aumento da efetividade na gestão do bem público e na reestruturação patrimonial e sustentável”.
A Rumo afirmou, em nota, que a “área requerida contempla única e exclusivamente o espaço necessário para a implantação da ferrovia, considerando seu projeto e a faixa de domínio estabelecida”. “A empresa segue em tratativas com o Exército.”
O traçado da Ferrovia Estadual Senador Vicente Emílio Vuolo, além de cruzar área militar, vai separar duas Terras Indígenas ocupadas pelo povo Boe Bororo.
A Terra Indígena Tadarimana fica a cerca de 10 km à direita da linha férrea, segundo os projetos apresentados pela Rumo às autoridades. A Terra Indígena Tereza Cristina fica mais distante, à esquerda.
Há, porém, uma divergência entre as distâncias calculadas pelos órgãos federais. No governo Jair Bolsonaro (PL), o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) disse que o território Tadarimana ficava a 10,1 km da ferrovia, enquanto o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural) calcula distância de 9,9 km.
Os números são relevantes porque uma portaria interministerial define que, na Amazônia Legal, para se construir ferrovias a até 10 km de terras indígenas, as empresas e órgãos públicos precisam ouvir os povos afetados pelo empreendimento, como forma de mitigar os problemas relacionados à construção.
Por causa das aferições que estipulam distância maior que 10 km, a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) enviou ofício à Rumo, em 2021, informando que a empresa não precisaria cumprir procedimentos específicos relacionados aos indígenas.
“Mesmo com essa dúvida sobre a distância exata, está claro para nós que há um dano gigantesco [ao povo indígena] porque a cultura Boe Bororo é, especialmente, uma cultura que gira em torno do ritual funerário. Quando algum Bororo da Tereza Cristina morre, todos migram para lá e passam um, dois meses em rituais próprios deles. Passando esse trem no meio das terras irmãs, pode haver algum impacto nessa relação”, disse à Folha o defensor público Renan Sotto Mayor, responsável pelo contato com os indígenas.
Com o aval da Funai, a Rumo conseguiu as primeiras licenças e avançou para a construção de partes da ferrovia sem consultar os Boe Bororo ou negociar contrapartidas.
Os processos burocráticos só foram interrompidos em agosto de 2022, quando o juiz federal Pedro Maradei Neto suspendeu a concessão de licenças ambientais para a ferrovia enquanto o Governo do Mato Grosso não negociasse com o povo Boe Bororo.
Em novembro de 2022, a Rumo fechou acordo com o Ministério Público Federal, a DPU (Defensoria Pública da União) e a Secretaria do Meio Ambiente do Mato Grosso. O documento estipula que a empresa pagará a contratação de consultoria especializada para o governo estadual realizar a consulta à comunidade indígena.
Em nota, a Rumo disse que está em “diálogo contínuo” com os órgãos responsáveis pela discussão da questão indígena.
Folha de SP