X acusa Brasil de violar liberdade de expressão e leva caso ao governo dos EUA

A rede social X, antiga Twitter, enviou um documento ao Escritório do Representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR) expressando preocupações sobre a proteção da liberdade de expressão e a aplicação da lei no Brasil. A manifestação foi divulgada pela própria plataforma na terça-feira (19) e faz parte da investigação comercial aberta pelo presidente Donald Trump contra o país.


Segundo o documento enviado pelo X, tribunais brasileiros prejudicam provedores de serviços digitais norte-americanos ao ignorar o Tratado de Assistência Jurídica Mútua (MLAT) entre os dois países. “Os tribunais estão contornando o Tratado de Assistência Jurídica Mútua entre EUA e Brasil, forçando subsidiárias locais a entregar dados e comunicações — mesmo de usuários americanos — sem usar canais diplomáticos e mesmo quando isso contraria a legislação americana”, afirma a empresa.

O X também critica decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), citando, em especial, a de 26 de junho de 2023, que considerou parcialmente inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet. Para a empresa, a norma protegia as redes sociais de responsabilização por conteúdos de usuários, exceto quando descumprissem ordens judiciais de remoção. “Isso aumenta os custos de conformidade, incentiva a censura excessiva e coloca em risco a liberdade de expressão, inclusive para usuários dos EUA. Solicitamos ao USTR que examine essas barreiras comerciais”, diz a plataforma.

A empresa também mencionou que o ministro Alexandre de Moraes determinou a remoção de usuários da plataforma tanto no STF quanto no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e que recursos contra essas decisões foram negados. “O não cumprimento das ordens de Moraes resultou em proibições em todo o país, congelamento de contas e o confisco de US$ 2 milhões da Starlink da SpaceX, apesar de não haver base legal ou conexão”, relatou o X.

A investigação comercial aberta pelo governo norte-americano, baseada na Seção 301 da Lei de Comércio de 1974, permite retaliar países cujas práticas sejam consideradas injustificadas e prejudiciais ao comércio dos EUA. O procedimento prevê que o Brasil seja ouvido e apresente suas justificativas, com duração estimada de 12 meses desde o início da apuração.


O processo coloca em debate a relação entre soberania nacional, leis internacionais e a proteção da liberdade de expressão em plataformas digitais.

Eis a íntegra do documento da rede social X enviado ao governo dos EUA:

Prezado Embaixador Greer,

A X (antigo Twitter) estabeleceu seu primeiro escritório no Brasil em 2012 e mantém operações no país há mais de uma década. O Brasil representa uma das maiores bases de usuários da plataforma no mundo, tornando-se um mercado estrategicamente relevante para a X. A empresa acompanhou de perto a evolução das políticas locais, interpretações judiciais e práticas de fiscalização. Ao longo desse período, certos desdobramentos geraram preocupações significativas quanto à previsibilidade regulatória, proporcionalidade das ações de fiscalização e proteção do comércio digital e da liberdade de expressão transfronteiriça. Essas tendências impactam diretamente os provedores de serviços digitais dos Estados Unidos e merecem atenção no contexto do processo da Seção 301.

Em 2014, o Brasil promulgou o Marco Civil da Internet, estabelecendo uma estrutura legal fundamental para a governança da internet no país. A lei reconhece a escala global da internet (Art. 2, I), seu papel em facilitar o acesso à informação e ao conhecimento (Art. 4, II), garante a liberdade de expressão (Art. 3, I) e a proteção da privacidade (Art. 3, II), além de afirmar o princípio da liberdade nos modelos de negócios. O Marco Civil também prevê que seus princípios atuam em conjunto com os compromissos internacionais do Brasil, reforçando a harmonização entre a regulação doméstica e normas globais.

De forma significativa, o Artigo 19 estabeleceu regras de responsabilidade de intermediários projetadas para proteger direitos fundamentais, incluindo a liberdade de expressão e de informação. Sob esse arcabouço, aplicativos de internet, incluindo plataformas de mídia social, podem facilitar a comunicação aberta e descentralizada, permitindo que indivíduos compartilhem opiniões, comentários e conteúdos criativos além dos canais tradicionais de mídia. O Marco Civil determina que aplicativos de internet só podem ser responsabilizados pelo conteúdo gerado por usuários se esse conteúdo for considerado ilegal por um tribunal independente, o aplicativo receber notificação adequada de uma ordem judicial indicando a localização do conteúdo ilícito e o provedor deixar de cumprir essa ordem válida.

No entanto, decisões judiciais e diretrizes governamentais subsequentes têm comprometido proteções essenciais estabelecidas pelo Marco Civil da Internet. Ao longo dos anos, tribunais brasileiros têm entendido que juízes podem obrigar diretamente subsidiárias locais de empresas estrangeiras de aplicativos de internet a fornecer quaisquer provas digitais necessárias para investigar ilícitos e crimes sob jurisdição brasileira, ignorando canais diplomáticos consolidados, como o processo de Assistência Jurídica Mútua (MLAT). Essa abordagem tem sido aplicada independentemente de onde os dados são processados ou armazenados, do vínculo técnico com o Brasil ou de potenciais conflitos com legislações de outras jurisdições, incluindo os Estados Unidos. Na prática, tribunais têm determinado a divulgação direta de dados e conteúdos localizados fora do Brasil, de usuários estrangeiros, incluindo norte-americanos, sem envolver autoridades dos EUA. Empresas que tentam contestar tais ordens enfrentam multas milionárias, ameaças de prisão de executivos locais (que não têm acesso técnico aos dados solicitados) e até bloqueio do serviço no país.

Em fevereiro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil confirmou, na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 51, que até o conteúdo de comunicações pode ser exigido de aplicativos de internet sem utilizar mecanismos diplomáticos estabelecidos, como o processo MLAT. A decisão se baseou em interpretação ampla e equivocada do Artigo 11 do Marco Civil, contornando procedimentos de longa data projetados para respeitar interesses jurisdicionais estrangeiros conforme o direito internacional. O Brasil continua sendo o único país da região que rejeita sistematicamente a aplicação de acordos de assistência jurídica mútua, obrigando subsidiárias locais a cumprir ordens, mesmo quando estas conflitam com a legislação brasileira e de outros países, incluindo os EUA. Além disso, as autoridades brasileiras exigem que tais subsidiárias operem no país sob pena de suspensão de seus serviços, garantindo influência coercitiva sobre provedores estrangeiros de aplicativos de internet.

Em junho de 2025, o STF também considerou parcialmente inconstitucional o Artigo 19 do Marco Civil da Internet, alterando significativamente o regime de responsabilidade de intermediários. Sob a regra original, aplicativos de internet só poderiam ser responsabilizados pelo conteúdo gerado por usuários se deixassem de cumprir uma ordem judicial válida identificando o material ilegal específico. A decisão do STF remove essa salvaguarda, permitindo a responsabilização baseada apenas em notificações privadas ou alegações de ofensa, sem análise judicial prévia. Esse novo padrão aumenta a incerteza jurídica, eleva os custos de conformidade, incentiva litígios contra empresas de aplicativos de internet dos EUA e cria pressão para que plataformas removam conteúdo preventivamente, afetando até mesmo discursos legais, inclusive de cidadãos norte-americanos. Ao expandir a responsabilidade sem ação legislativa, a decisão compromete a previsibilidade regulatória para provedores de internet baseados nos EUA, criando riscos operacionais que podem restringir o acesso ao mercado e o comércio digital entre Estados Unidos e Brasil.

Esse novo padrão de responsabilidade aplica-se até mesmo a disputas complexas sobre legalidade, que tribunais levam anos para resolver e sobre as quais frequentemente há divergência entre juízes, transferindo, na prática, determinações legais para empresas privadas. Isso pode resultar na remoção de conteúdo originado por indivíduos ou entidades dos EUA, impactando fluxos de informação transfronteiriços. Plataformas que se recusam a tomar tais decisões arriscam penalidades financeiras substanciais, criando forte incentivo à conformidade excessiva. A combinação de incerteza jurídica, custos elevados de conformidade e alcance extraterritorial configura um ambiente restritivo ao comércio, desestimulando investimentos e inovação de empresas de aplicativos dos EUA no mercado brasileiro.

Alguns tribunais brasileiros também têm entendido que suas ordens de remoção têm efeito global, podendo exigir que um provedor de internet remova conteúdo considerado ilícito no Brasil de todas as jurisdições onde a plataforma atua, mesmo que esse conteúdo seja legal em outros países, incluindo os EUA. Por exemplo, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu recentemente que uma ordem judicial brasileira determinando a remoção de conteúdo ofensivo de um aplicativo de internet possui efeitos extraterritoriais. Por maioria, o STJ concluiu que a aplicação global é “consequência natural da natureza sem fronteiras da internet”, desconsiderando o princípio fundamental do direito internacional de que a jurisdição de um tribunal é limitada ao seu território.

Desde 2020, o STF e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), notadamente por meio de várias ordens do Ministro Alexandre de Moraes, têm determinado que a X suspenda contas de usuários, incluindo políticos e jornalistas, abrangendo, em alguns casos, cidadãos dos EUA. A grande maioria dessas ordens foi emitida em sigilo, impedindo que os usuários afetados fossem notificados ou exercessem seu direito de defesa. Muitas determinaram não apenas a remoção de conteúdo específico, mas a suspensão de contas inteiras.

Recursos da X contra essas medidas — quando não deixados sem decisão por longos períodos sem base legal — foram rejeitados por falta de legitimidade, com o Ministro Alexandre de Moraes considerando que a X não possuía direito de contestar as ordens. Quando a X se recusou a cumprir medidas claramente excessivas e sem base legal, o Ministro bloqueou o acesso à plataforma em todo o país, congelou contas bancárias da subsidiária local e de seu representante legal, e ameaçou o representante com prisão. Moraes também determinou, sem base legal, a apreensão de aproximadamente 2 milhões de dólares da conta bancária da divisão Starlink da SpaceX, embora Starlink e SpaceX não tivessem ligação com o litígio envolvendo a X. Essas ações, aplicadas contra subsidiárias locais e terceiros não relacionados (incluindo outra empresa dos EUA), ilustram até que ponto medidas de fiscalização no Brasil podem extrapolar os limites da jurisdição doméstica, gerando incerteza jurídica, riscos operacionais e potenciais barreiras comerciais para empresas norte-americanas.

Desde a promulgação do Marco Civil da Internet em 2014, o Brasil estabeleceu um arcabouço legal que, em teoria, buscava equilibrar direitos fundamentais, inovação e cooperação internacional. Entretanto, desenvolvimentos posteriores e práticas de fiscalização — especialmente via interpretações judiciais amplas — vêm corroendo gradualmente essas salvaguardas. O judiciário brasileiro adotou medidas que contradizem o propósito original do Marco Civil, bem como os compromissos internacionais do Brasil com os EUA, incluindo ignorar o processo de Assistência Jurídica Mútua, impor remoções extraterritoriais, alterar regras de responsabilidade de intermediários sem processo legislativo e empregar medidas coercitivas contra subsidiárias locais, representantes e terceiros não relacionados. Essas ações geraram um ambiente de incerteza jurídica, riscos operacionais e de conformidade, e potenciais barreiras de acesso ao mercado para empresas de tecnologia dos EUA. O efeito cumulativo tem sido uma deterioração significativa do clima regulatório e judicial para serviços digitais no Brasil, comprometendo o Estado de Direito e a estabilidade necessária ao comércio e investimento transfronteiriços no setor de tecnologia.

Atenciosamente,
X Corp.

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