A advogada responsável por agendar com o Ministério da Justiça a realização de audiências com a presença da mulher do líder do Comando Vermelho no Amazonas recebeu pagamentos da facção criminosa, conforme recibos bancários obtidos pelo Estadão. Janira Rocha é ex-deputada estadual pelo PSOL no Rio de Janeiro e foi quem levou Luciane Barbosa Farias, a “dama do tráfico amazonense”, para audiências no MJ, segundo a própria pasta. As informações são do Estadão.
O nome de Luciane não aparece na agenda do ministério – apenas o de Janira. Ontem, a pasta comandada por Flávio Dino argumentou que não tinha como saber da relação dela com o CV pois quem pediu a audiência foi Janira. Portanto, não havia prévio conhecimento da presença de Luciane na reunião. Os documentos mostram, porém, que Janira é ligada também à facção.
Recibos apreendidos pela Polícia Civil amazonense (PC-AM) no celular de uma integrante da facção mostram três transferências do “contador”do grupo para a conta de Janira em um único dia, totalizando R$ 23.654,00. Os pagamentos aconteceram dias antes da primeira reunião de Luciane Barbosa Farias, a “dama do tráfico amazonense”, com o secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Elias Vaz, em março deste ano.
O encontro foi solicitado por Janira, segundo o próprio secretário de Flávio Dino e os registros na agenda oficial. Em nota assinada por Vaz (veja detalhes abaixo), o Ministério da Justiça alegou que não tinha como saber de antemão dos pagamentos do Comando Vermelho à ex-deputada.
Os recibos constam em relatório sigiloso da Polícia Civil do Amazonas obtido pela reportagem. Os pagamentos foram feitos por Alexsandro B. Fonseca, conhecido como “Brutinho” ou “Brutus”. Segundo a PC-AM, ele era uma “espécie de contador da facção criminosa, responsável pela contabilidade da ‘caixinha’ (contribuição dos faccionados)”. Seria também o tesoureiro do CV nos municípios de Parintins, Nhamundá e Carauari. Os pagamentos foram feitos nos valores de R$ 3 mil, R$ 5.645,00 e R$ 15 mil. O nome completo e o CPF de Janira aparecem nos comprovantes.
Há ainda recibos dos pagamentos para a ONG Liberdade do Amazonas, criada para, supostamente, defender os direitos humanos dos presos. A presidente da entidade é justamente Luciane, esposa de Clemilson dos Santos Farias, conhecido como Tio Patinhas, um dos líderes do Comando Vermelho no Estado, hoje preso em Tefé (AM).
No caso da ONG de Luciane, a contabilidade do CV do Amazonas registra despesas de R$ 22,5 mil para o mês de fevereiro, indicando que a entidade é, na verdade, sustentada pelo CV. “Aluguel da Casa R$ 1.500,00″; “salário advogadas R$ 7.200,00″ e “salário funcionários R$ 9.000,00″ são as principais despesas. Há ainda registros de transferências de R$ 12.562,00 e R$ 10.000,00 para a entidade, novamente feitas por Alexsandro Fonseca. Neste caso, os pagamentos estão datados do dia 21 de fevereiro.
“Pelas imagens extraídas do celular, é possível afirmar que a facção CV financia todas as despesas da Associação, tais como: pagamentos de aluguel de casa, conta de água, conta de luz, internet, plano de chips, créditos de chip, contador, salários de assistente social, salários de advogadas, salários de funcionários, seguro conta, material de limpeza e papelaria, gasolina e passagem dos funcionários, conforme demonstrado nas imagens abaixo”, diz um trecho do relatório.
Como mostrou o Estadão, Luciane e sua equipe da Liberdade do Amazonas estiveram em duas ocasiões dentro do Ministério da Justiça. No dia 19 de março, foram recebidas por Elias Vaz; e no dia 02 de maio, estiveram com o titular da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) do MJ, Rafael Velasco.
Todas as ações do governo para a área prisional passam pela secretaria de Velasco, que já trabalhava com este tema nos governos do ministro da Justiça, Flávio Dino, no Maranhão. Na visita de maio, Luciane também se reuniu com Paula Cristina da Silva Godoy, da Ouvidoria Nacional de Políticas Penais (Onasp) e Sandro Abel Sousa Barradas, que é Diretor de Inteligência Penitenciária da Senappen.
A advogada Janira Rocha (a primeira da esquerda para a direita) e o secretário nacional de políticas penais do MJ, Rafael Velasco Brandani, junto com Luciane Barbosa, conhecida como a “dama do tráfico amazonense” (de terno branco) Foto: Reprodução: Instagram/ @associacaoliberdadedoam
“Informo que, no dia 14 de março, recebi solicitação de audiência por parte da Sra. Janira Rocha, ex-deputada estadual no Rio de Janeiro e vice-presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da ANACRIM-RJ”, escreveu Vaz no X (antigo Twitter). “Quanto à Sra. Luciane, ela estava como acompanhante da advogada Janira Rocha, e se limitou a falar sobre supostas irregularidades no sistema penitenciário”, disse.
Explicação similar foi usada pelo Ministério da Justiça. Segundo a Pasta, o pedido de audiência foi feito por “uma entidade de advogados”, a Associação Nacional de Advocacia Criminal (Anacrim), da qual Janira Rocha faz parte.
“A agenda na Senappen e da Anacrim aconteceu no dia 2 de maio, quando foram apresentadas reivindicações da Anacrim”, diz a nota. Ainda segundo o Ministério, era “impossível” ao Setor de Inteligência da Senappen saber a “situação da acompanhante, uma vez que a solicitante da audiência era uma entidade de advogados, e não a cidadã (Luciane) mencionada”.
A agenda do secretário Nacional de Políticas Penais, Rafael Velasco, informa reunião com a advogada Janira Rocha, que recebeu pagamentos do Comando Vermelho. Ministério da Justiça. Foto: MinistériodaJustiça
Recibos estavam em celular de “contadora” do CV
A investigação da Polícia Civil do Amazonas começou em 17 de dezembro de 2022, com a apreensão de um celular roubado durante uma abordagem da PM amazonense no município de Maués (AM). O celular, segundo o relatório da Polícia, era do filho da “torre” do Comando Vermelho em Maués, Gleicimara Teixeira da Silva. “Torre” é como a organização criminosa chama os responsáveis por fazer a coleta das contribuições dos membros da facção. “O conteúdo contido no aparelho telefônico analisado é impressionante, praticamente um “raio x” de como funciona o crime organizado no município de Maués, assim como sua dinâmica no Estado do Amazonas”.
Os dados do aparelho mostram a existência de uma contabilidade detalhada por parte da facção, com o registro de ingressos e despesas, inclusive para a compra de armas e de pagamentos para a “matriz” do Comando Vermelho no Rio de Janeiro. As tabelas são intituladas “Transparência C.V-AM”. Em outubro de 2022, por exemplo, a arrecadação foi de R$ 434,3 mil.
Janira Rocha foi eleita deputada estadual em 2010 pelo PSOL do Rio de Janeiro. Ela também concorreu ao mesmo cargo nos pleitos de 2006 e 2014, mas não teve votos suficientes. Em 2021, foi condenada em primeira instância na Justiça por contratar funcionários fantasmas e obrigado servidores de seu gabinete a devolverem parte dos salários durante seu mandato, de 2011 a 2014. O patrimônio declarado à Justiça Eleitoral por Janira passou de R$ 9 mil em 2010, quando foi eleita deputada, para R$ 402 mil em 2014, uma alta de 4.366%.
Janira também foi diretora de Relações Institucionais do Instituto Anjos da Liberdade, uma outra ONG que também é acusada de servir de fachada do Comando Vermelho. A fundadora da Anjos da Liberdade é a advogada Flávia Fróes, conhecida por defender líderes de facções como Marcinho VP e Fernandinho Beira-Mar. Fróes é investigada pela Polícia Federal (PF) por ter pedido dinheiro para chefes de facções criminosas para financiar sua campanha a deputada federal nas últimas eleições. A corporação também apura se a advogada comprou uma BMW por R$ 280 mil no período eleitoral.
O nome de Janira voltou aos holofotes recentemente, ao assumir a defesa da ex-deputada federal Flordelis dos Santos de Souza, condenada no ano passado pelo assassinato do marido, o pastor Anderson do Carmo.
Secretaria penal diz promover “diálogos construtivos”
Procurado, o Ministério da Justiça enviou uma resposta assinada pelo secretário de Assuntos Legislativos, Elias Vaz. Ele alega que não tinha como saber de antemão dos pagamentos do Comando Vermelho a Janira Rocha. “Considero ser um absurdo imaginar que alguma autoridade vai solicitar quebra de sigilo bancário ou informações bancárias de uma ex-deputada que solicitou uma audiência, antes de realizá-la. Isso nunca aconteceu antes no Brasil. Além de absurdo, isso seria inconstitucional”, disse Vaz.
“(…) É óbvio que eu jamais poderia ter ciência disso no dia 14 de março. Reitero que tenho carreira política reconhecida e honesta, e não será um suposto erro administrativo que vai me macular”, diz o secretário, em nota.
A Secretaria Nacional de Políticas Penais do MJ informou que as agendas de suas autoridades, incluindo o secretário, Rafael Velasco, “são públicas e acessíveis a qualquer cidadão”. “Além disso, qualquer pessoa pode receber atendimento desta secretaria mediante agendamento ou por meio dos canais da Ouvidoria Nacional dos Serviços Penais. Importante ressaltar que o atendimento é franqueado a todos, sem qualquer distinção, de acordo com os princípios constitucionais”.
“Reiteramos que o atendimento é realizado de forma transparente e impessoal, sem favorecimentos ou privilégios a qualquer indivíduo. As reuniões realizadas pelas autoridades do MJSP têm o propósito de promover diálogos construtivos em prol da segurança pública e do cumprimento de suas responsabilidades institucionais”.
A secretaria disse ainda que sua Diretoria de Inteligência “desempenha um papel relevante na segurança penitenciária e levantamento de informações”, mas não tem por atribuição “impedir o acesso de pessoas a prédios públicos”
“Repudiamos veementemente qualquer tentativa de associar agentes públicos desta Senappen a organizações criminosas. Estamos comprometidos com a transparência e integridade, e as agendas estão abertas à consulta pública para esclarecimentos. Ressaltamos que a Senappen vem desempenhando um trabalho sério e comprometido com a segurança pública por meio de suas Diretorias. Destacamos que não há pessoalidade no atendimento às agendas públicas por parte das autoridades deste órgão”, diz ainda a nota da Senappen.
Luciane Barbosa, por sua vez, disse em nota que não é “faccionada de nenhuma organização criminosa”. “E venho sim, como inúmeras outras esposas e familiares, sendo criminalizada pelo fato de ser esposa de um detento. Respondo a um processo em que fui absolvida em primeira instância, houve recurso do MP e condenação em segunda, sendo que agora continuo recorrendo. Que eu saiba, no Brasil, definido pela instância máxima da Justiça, uma pessoa só pode ser considerada criminosa após o trânsito em julgado”, diz o texto. “No dia 13 de dezembro de 2023, familiares de diversos Estados do país estarão em Brasília, exercendo sua cidadania e apresentando sua pauta”.
FONTE: Estadão