Barroso diz que suas falas foram tiradas do contexto e divulga o texto falado. Confira:

“Eu participo da Brazil Conference desde a primeira, em 2015. Isso, por um lado, me traz orgulho, mas por outro lado, me dá a sensação de que estou ficando antigo.
Gostaria de fazer três observações iniciais. Em primeiro lugar, sou um ator institucional.


Não sou um ator político. Portanto, meu papel é cuidar de defender as instituições e a democracia, sem exibir preferências políticas.
Em segundo lugar, a minha lógica, consequentemente, é uma lógica do certo ou errado, justo ou injusto, legítimo ou ilegítimo, e não a lógica do amigo ou inimigo.
Em terceiro lugar, sou uma pessoa que trabalha com fatos, com a verdade possível, que, no Brasil, se tornou um pouco revolucionário, porque as pessoas escolhem lados e vão adaptando os fatos às narrativas que querem fazer.

Dividi minha apresentação inicial em três partes. Na primeira, vou falar sobre a busca da verdade possível nesse mundo da desinformação. Na segunda, sobre a democracia e a pressão que ela tem sofrido do populismo autoritário. Na terceira, uma agenda para o Brasil.

Sobre a busca da verdade possível no mundo da desinformação, precisamos, no Brasil, restabelecer o poder da verdade possível e plural dentro de uma sociedade aberta. Precisamos enfrentar esse mundo da desinformação, da mentira deliberada e das teorias conspiratórias.

Tenho aqui na minha mão uma caneta. A partir daí, alguém pode dizer que é uma caneta azul e não gosta de azul, que é uma caneta importada e não gosta de importado ou é uma caneta esferográfica num mundo de computador pessoal, o que não tem nenhum sentido. Mas isso é uma caneta, não é um pneu.


Se alguém disser que é um pneu, perdemos a capacidade de interlocução e a perda da capacidade de interlocução é que leva à intolerância e à violência.
Minha primeira ideia, instigando a democracia, é fazermos um esforço para
trabalharmos com a verdade possível e, a partir daí, cada um ter sua intepretação.
Temos que aceitar até as verdades de que não se gosta.

Vou dizer quatro verdades que me parecem factuais. A primeira é que, em 1964, no
Brasil, ocorreu um golpe de Estado. Pela singela razão que o presidente foi destituído por um mecanismo que não estava previsto na Constituição. Isso se chama golpe de Estado. A partir daí, qualquer pessoa pode ter a interpretação que quiser. Foi um golpe contra as classes populares, foi um golpe para preservar a ordem, mas há um fato: houve um golpe de Estado.

Houve uma ditadura militar no Brasil. Houve fechamento do Congresso, cassação de mandatos, aposentadoria compulsória de professores, pessoas foram para o exílio, tortura e censura. Isso são coisas que só acontecem na ditadura. A partir daí, qualquer pessoa pode ter o argumento que achar que deve ter para interpretar esse fato.

Mas negar o fato não é uma forma de se trabalhar a história.
A corrupção esteve presente na vida pública brasileira de forma contínua, inclusive de maneira graúda, entre 2003 e 2010. Esse é um fato. Dinheiros foram devolvidos, acordos foram firmados em Nova York com a devolução de bilhões de dinheiros. A partir daí, as pessoas podem interpretar, justificar, explicar, mas não devem poder negar os fatos.

Houve uma posição negacionista no Brasil em relação à pandemia. Sem a adoção das medidas científicas recomendadas, morreu mais gente do que precisava. É um fato. A partir daí, cada um pode interpretá-lo como quiser.
Esse é a primeira ideia que eu queria compartilhar com as pessoas num ambiente
acadêmico e intelectual: a gente deve procurar a verdade possível e plural. Repetindo o óbvio: as pessoas têm direito à própria opinião e não aos próprios fatos.

Ou na frase boa, recentemente lembrada pela Madeleine Albright, que recentemente faleceu: “a mentira não é uma outra versão da história. A mentira é só uma mentira”.

A segunda ideia é que a democracia constitucional no mundo em geral, no Brasil
inclusive, se encontra questionada, sob ataque de um processo histórico, que é um
populismo autoritário. Não é uma ideologia, mas uma atitude divisionista da sociedade em “nós e eles”. “Nós” o povo puro, decente e conservador. “Eles” as elites corrompidas, cosmopolitas e progressistas.

É uma divisão que tem risco democrático, porque ela é antiplural. Se alguém se
apresenta como único representante legítimo do povo você nega o pluralismo, que é a primeira e grande característica da democracia. Além do que, não só o povo não é homogêneo, como as elites também não são tampouco.

Portanto, há elites das quais você precisa mesmo se livrar, que são essas elites extrativistas que se apropriam do Estado e o colocam a serviço dos seus interesses.
Mas todo país precisa ter elites intelectuais nas universidades, do serviço público, do Itamaraty, da Fundação Oswaldo Cruz, do empresariado, para gerar emprego, inovação, empreendedorismo. Portanto, também as elites não são um conceito homogêneo.

De modo que o populismo tem uma falha conceitual ontológica na divisão de nós, os únicos representantes do povo, e eles, as elites, porque nenhuma coisa, nem outra, são conceitos homogêneos.
E o populismo tem essa vocação autoritária de comunicação direta com as massas, bypass das instituições intermediárias como o Congresso, a imprensa, a sociedade civil, e ataques às Supremas Cortes ou Cortes Constitucionais. Esse é um processo que se reproduz no mundo, de modo geral, e mesmo nas democracias mais consolidadas.

Coisas inquietantes também aconteceram nos Estados Unidos, no Reino Unido, para citar dois exemplos, e no Brasil também. E acho que isso é factual.
No Brasil, houve um comício na porta do quartel general do Exército pedindo a volta do regime militar, fechamento do Congresso e do Supremo. Isso não é natural.

Houve manifestação no 7 de Setembro com ofensas a pessoas, a instituições e afirmação de descumprimento de decisões judiciais. Isso não é natural. Houve e continua a haver ataques infundados, inverazes à honestidade, à integridade do processo eleitoral, em que nunca se verificou fraude. E nesse momento se está articulando novamente os mesmos ataques. Isso não é normal. Também aconteceu nos Estados Unidos.

Até hoje, 70% dos Republicanos estão convencidos de que houve fraude, porque o candidato derrotado reproduz repetidamente essa afirmação.
Portanto, há que se ter a percepção de que o mundo vive uma conjuntura muitas vezes desfavorável à própria democracia. Eu acho que no Brasil as instituições têm sido capazes de resistir, não sem sequelas. O Congresso continua funcionando. O Judiciário continua funcionando.

A imprensa, que é muito atacada, mas continua a ser uma
imprensa livre. Não quero minimizar os riscos, mas quero dizer que, até aqui, os limites estão sendo traçados e, de certa forma, estão sendo preservados.
Há uma frase boa de uma música do Legião Urbana em que ele fala “não tenho medo de escuro, mas deixe as luzes acessas”. Temos instituições que se consolidaram, mas elas dependem de continuarmos atentos.

O país está polarizado, mas precisamos ser capazes de construir uma agenda comum para o Brasil. Com denominadores comuns, para unir as pessoas em torno de um mínimo, que são os valores que se extraem da Constituição. A partir desses valores mínimos, as pessoas podem ser mais liberais, conservadoras, progressistas, mas o que faz o país é um conjunto de ideias e de valores que nos unem e nos fazem trabalhar conjuntamente para realizá-los.

Portanto, a minha agenda para o Brasil passa por três eixos: integridade, enfrentamento à pobreza extrema e às desigualdades injustas e desenvolvimento sustentável.
Sobre integridade, a minha ideia é baseada em duas regras elementares. No espaço
público, não desviar dinheiro.

No espaço privado, não passar os outros para trás. É simples, mas é altamente revolucionário. Nenhum país se torna desenvolvido sem elevar os seus padrões de ética pública e privada e precisamos ter isso em linha de ponta.

Desenvolvimento sustentável passa pelo crescimento econômico. Não se enfrenta a
pobreza sem crescimento econômico. Passa por justiça social, que é um modelo
distributista melhor, e por preservação ambiental, com a ideia de se criar uma
bioeconomia sustentável.

Item central da minha agenda é a educação básica. Gosto de repetir isso à saciedade. Há 60 anos o Brasil tinha duas vezes e meia a renda PIB per capita da Coreia do Sul, hoje tem um terço.

A primeira coisa a fazer é reconhecer que erramos muito nesses últimos 60 anos e eu colocaria no topo da lista o tratamento inadequado e insuficiente à
educação básica. E a deficiência na educação leva a vidas menos iluminadas,
trabalhadores menos produtivos e elites menos capacitadas para resolver os problemas do país.

Os problemas da educação brasileira são a não alfabetização da criança na idade certa, evasão escolar no ensino médio e déficit de aprendizado – a criança termina o
fundamental e o médio e não aprendeu o que tinha que aprender – além da baixa
atratividade da carreira de professor. Quem acha que o problema da educação no Brasil é escola sem partido ou doutrinação marxista está assustado com assombração errada e vai nos atrasar na história.

Segundo item de uma agenda para o Brasil é a questão racial. Não há como falar em enfrentamento à pobreza, à desigualdade e em desenvolvimento sustentável sem enfrentar a questão racial. Pela dívida histórica que temos pela escravização, pela maneira como se deu a abolição, sem integração, por um racismo estrutural que manteve a subalternidade e pela necessidade de se criarem exemplos, símbolos de sucesso negros, para que a inspiração seja o juiz, o CEO e não o traficante da região.

Em terceiro lugar, precisamos de um sistema tributário que não seja regressivo. O
sistema tributário brasileiro é o mais complexo do mundo. Não é uma hipérbole, é um fato documentado pelo Banco Mundial. O compliance tributário no Brasil leva dez vezes mais tempo do que o de qualquer outro lugar no mundo. Mas esse não é o maior problema, embora seja grave. É que é um sistema concentrador de renda, com ênfase em imposto sobre consumo – eu e o garçom que me atende no Supremo pagamos exatamente o mesmo imposto – e uma subtributação de renda e de capital.

Se não mexermos nisso, que significa cortar na pele da elite brasileira, e, portanto, de todos nós, vamos continuar em um país em que o dono paga menos imposto do que o empregado.

Outro item é a Proteção da Amazônia. Presto aqui homenagem ao professor Carlos
Nobre, que é inspiração para todos nós nessa matéria. A Amazônia serve ao mundo e ao Brasil pela sua biodiversidade, pela regulação do clima, pelo ciclo da água. Toda a América do Sul depende da Amazônia. Portanto, precisamos enfrentar os crimes ambientais, desmatamento, extração ilegal de madeira, mineração ilegal, grilagem de terra, invasão de terras indígenas.

E precisamos criar uma economia sustentável para as 25 milhões de pessoas que vivem na região, a ideia de uma bioeconomia, indústria 4.0. O mundo inteiro está preocupado com a Amazônia, então vamos trazer os grandes ambientalistas, empreendedores, cientistas e pensar coletivamente, sem sacrifício da
soberania nacional, quais os projetos possíveis.

Alguns autores falam, vamos pensar em um Vale do Silício verde. Precisamos ter projetos que deem alternativas de vida às pessoas daquela região para que não precisem de práticas predatórias.
Li que George Washington fez o menor discurso de posse na presidência dos Estados Unidos com 130 palavras e que William Harrison fez o maior discurso, com mais de 8 mil palavras pronunciadas em uma noite fria e de tempestade. Ele morreu, 30 dias depois, de uma pneumonia gravíssima que ele contraiu naquela noite, e eu considero que essa é a maldição que recai sobre oradores que falam além do seu tempo.

Eu vou parar nesse ponto, mas a minha agenda ainda inclui habitação popular,
saneamento básico, mobilidade urbana, infraestrutura e cultura, mas fica para
conversamos ao logo do tempo. E a tudo isso se soma: nós nunca precisamos tanto no Brasil de um choque de civilidade e humanismo.” (…)

Em resposta ao questionamento da deputada federal Tábata Amaral sobre como será o combate às fake news no Brasil durante o período eleitoral, e da jornalista Natuza Nery, sobre a agilidade da Justiça Brasileira de responder às fake news contra pessoas, candidatos e representantes públicos.

Ministro Barroso: É claro que na vida temos medo, porque isso é humano e uma forma de prevenção. Mas temos que ter cuidado na vida para que nossos medos não se transformem em profecias autorrealizáveis. Portanto, se você fica obsessivamente remoendo um perigo, acaba inconscientemente conspirando para ele acontecer. Eu acho que há risco, mas não está na iminência de tudo desabar. E, portanto, a gente precisa continuar firme e ter medo do próprio medo.

Natuza: mas vai desabando aos poucos.

Barroso: Sim e não. O Supremo tomou decisões importantes e foram cumpridas. A gente liberou o fundo clima e o dinheiro chegou lá. Determinou que o conselho das crianças tivesse representante da sociedade civil e tem. As decisões não estão sendo descumpridas. O Congresso derruba veto, derruba medida provisória. Está funcionando.

Não gostaria de ter uma narrativa de que está tudo desmoronando. É preciso ter uma compreensão crítica de que há coisas ruins acontecendo, mas é preciso não
supervalorizar o inimigo. Nós somos muito poderosos, nós somos a democracia. Nós é que somos os poderes do bem e ajudamos a empurrar a história na direção certa. O mal existe, é preciso enfrentá-lo, mas o mal não pode mais do que o bem.

Porque, se pudesse, nada valeria a pena. Eu acredito nos valores que nos unem e que eles vão prevalecer.
Quando eu estava na faculdade, as minhas preocupações eram como acabar com a
tortura, com a censura, como construir instituições democráticas em continentes onde elas não se firmavam. É claro que a gente tem dificuldades, mas hoje estamos discutindo em investir em ciência e tecnologia, investir melhor em educação, elevar a ética pública e privada.

Tivemos um retrocesso? Temos novas preocupações? Temos. Porque a história não é linear. Mas a gente não pode ficar amargo a cada primeira dificuldade. Temos que
continuar empurrando na direção correta.
O mundo, e não só o Brasil. A revolução tecnológica, a revolução industrial, com a
internet, trouxe as mídias sociais, trouxe muita coisa boa. Não acho que a vida está ruim com tendência a piorar. Mas tem esse subproduto que é o ódio, a desinformação, as teorias conspiratórias.

A imprensa profissional precisa reocupar o espaço em que existam fatos comuns. O que aconteceu hoje é que cada um tem os próprios fatos, a própria bolha. E cada um fala para o seu público.
Se a gente não criar um espaço comum de fatos a partir do qual as pessoas vão ter
opiniões, nós vamos nos perder na história. E para reocupar esse espaço você precisa de imprensa profissional com um filtro ético e técnico mínimo dos fatos que vamos compartilhar. A partir daí, cada um tem a sua opinião.


O Brasil, Tábata, não tem a universidade ideal, as Forças Armadas ideais, o Judiciário
ideal. O Judiciário é também uma instituição em constante aperfeiçoamento. Agora, o marco civil da internet prevê que você só retira uma matéria de uma rede social se houver uma primeira decisão judicial, liminar que seja, determinando a retirada, para que você não crie em cada rede social um censor privado que vai escolher o que pode e o que não pode entrar. Não acho que tenha sido uma má solução.

Em um caso como o seu, o juiz deveria ter que, no primeiro momento, verificado que a informação é falsa, que há uma sexualização, que há uma mentira deliberada, ter mandado retirar imediatamente. Não conheço o caso, mas pode ser que tenha havido uma falha de julgamento. Daí não é falha na estrutura.
As pessoas inconformadas com a promessas da Constituição que foram realizadas – ação afirmativa, reconhecimento de gays, proteção ambiental, demarcação de terras indígenas – se somou a esse grupo dos insatisfeitos com as promessas não realizadas, que é a conquista de igualdade, a melhor distribuição de renda.

Então vivemos um momento em que todos os demônios se libertaram. Saíram à luz do dia os homofóbicos, misóginos, racistas, fascistas. É preciso enfrentá-los, mas sem a sensação de que perdemos. Porque a causa das mulheres, do meio ambiente, da igualdade racial, do meio ambiente, não são causas progressivas, são causas da humanidade. Portanto, precisamos convencer todas as pessoas de que a dignidade humana, a igualdade entre as pessoas, a emancipação e o florescimento de todos é bom para todo mundo e não só para um grupo. Defendemos as causas da humanidade”.

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